Casas que Ferem: A Dor Invisível do Trauma Infantil
Hoje escrevo sobre crianças que sofrem em silêncio. Escrevo para dar voz aos que choram e nunca recebem colo. Aos que crescem com Pais presentes, mas que deles não recebem amor, só dor. Aos que não sabem explicar o que estão a viver. Aos que têm de aprender a não precisar, a não esperar, a não pedir. Aos que têm de aprender a adivinhar o que o outro sente, para não o desiludir. Aos que se anularam tanto que nunca descobriram o que gostam. A todo os que se adaptam. E que, nesse esforço para sobreviver, algo neles começa a desaparecer.
E escrevo para os que se tornaram adultos, sem nunca terem sido crianças.
Campo de Batalha Silencioso
Muitas crianças e adolescentes vivem em silêncio, presos a realidades invisíveis para a maioria. Todos os dias, crianças e jovens em Portugal e no mundo vivem experiências que desafiam a nossa compreensão. Muitos estão a crescer em lares abusivos onde o medo é constante e o amor inexistente, onde os adultos que os deveriam proteger são, afinal, fonte de dor, abuso e exploração.
São crianças que crescem em casas que ferem, que são ensinadas a acreditar que são amadas, mas vivem em alerta. Falar é um risco. O corpo sente o perigo antes de a mente o conseguir nomear. São crianças com traumas silenciosos, que aprenderam a ser invisíveis para sobreviver.
A casa, que deveria proteger, transforma-se num campo de batalha silencioso, onde as palavras ferem e o silêncio grita.
A Dor Invisível do Trauma Infantil
Estes adolescentes vivem entre nós – nos transportes, nas escolas, nos centros comerciais. Alguns escondem nódoas negras por baixo da roupa. Outros carregam feridas mais profundas, invisíveis, mas igualmente cortantes. Crescem em lares marcados por dependências, negligência, tráfico, violência física, emocional e sexual. E fazem-no em silêncio, sem que o mundo à volta se aperceba – ou queira ver.
O trauma infantil instala-se no corpo, nos gestos, na forma de respirar, de confiar. A dor emocional nas crianças muitas vezes passa despercebida a professores, familiares e vizinhos. Essas crianças e jovens tornam-se “exemplares”, “caladas”, “fáceis”. Mas esse comportamento esconde um sofrimento profundo.
Reconhecer e Dar a Mão
Não são casos isolados. É uma realidade com números e rostos.
O Tiago tem 14 anos e, à noite, foge de casa para respirar. A Sara tem 16 anos e é usada como moeda de troca pelos vícios da mãe. O Miguel, com 12 anos, já transporta “encomendas” para traficantes da zona. E a Joana, com 8 anos, já viu homens demais para a idade que tem.
Se não forem socorridas, estas crianças serão os adultos com dores no corpo. Com insónias. Com crises de ansiedade. Com medos profundos de falhar, de ser rejeitados, de não estar à altura. Adultos que se olharão ao espelho e não saberão quem são. Que viverão cansados por dentro; adultos que ainda pedirão desculpa por existir.
Cicatrizar as Feridas
Curar o trauma familiar não é uma linha reta. É um regresso lento e sagrado à essência – aquela que nunca teve espaço para existir em liberdade. A cura começa quando a criança ou o jovem encontra coragem de dizer:
“Não foi minha culpa.” “Eu não merecia aquilo.” “Eu importo.”
Se alguém que esteja a ler este texto se estiver a curar de casas que ferem, deixo esta mensagem:
A tua dor é real. O teu silêncio é sobrevivência. A tua voz é preciosa.
Muitos carregamos feridas. Mas podemos, também, carregar luz. A luz da compreensão, da compaixão e da escolha consciente de construir lares que curam em vez de ferir.
Coragem para Travar o Trauma Infantil
Este texto não é sobre estatísticas. É sobre olhar com coragem. É sobre reconhecer que há crianças e jovens a viver realidades cruas, onde a infância não tem lugar, e onde a adolescência é um campo de batalha entre sobreviver e desaparecer.
A responsabilidade não é apenas da família, assumindo que existe e que desconhece estas realidades, nem da escola ou da polícia. É de todos nós.
Enquanto sociedade falhamos, sempre, que escolhemos ignorar.
Falhamos quando rotulamos sem perguntar. Falhamos quando viramos o rosto. Falhamos quando o medo que sentimos é uma pálida sombra do medo que aquelas crianças e jovens enfrentam em todos os momentos em que não estão a dormir. E mesmo quando dormem, nunca descansam, estão sempre alerta.
É urgente escutar. Denunciar. Proteger. Acolher. Formar. Acompanhar. E, acima de tudo, respeitar a dor sem romantizar, sem julgar, sem infantilizar.
Este artigo é um apelo à ação e à consciência. Não para criar medo, mas para semear empatia. Porque uma criança ou um jovem ouvidos a tempo podem ser adultos livres e felizes amanhã. Porque o seu passado não define o futuro. E porque nenhuma criança merece crescer com medo. Não é humano haver crianças feridas.
Se conheces alguém que vive ou trabalha com crianças e adolescentes, partilha este texto. Se és educador, terapeuta, técnico, vizinho ou apenas um ser humano – lembra-te: às vezes, a presença atenta de um adulto pode ser a diferença entre o trauma e a esperança.
Sê a ponte entre o Trauma e a Esperança.
© Ana Kintsugi